1. Inês, em primeiro
lugar foi uma surpresa imensa ver um artigo de alguém com deficiência num site
de notícias LGBT português e com tanto em comum comigo. De que forma encaras o mundo lá fora? Como te
encaras pertencendo a três minorias: ter deficiência, ser LGBT+, e ser
poliamorosa?
O mundo “lá fora” é… uma dicotomia muito grande. Por um lado
há imensos esforços para a mudança de mentalidades a acontecer, o activismo é
cada vez mais. Por outro lado, a emergência de novos grupos “anti” também me
assusta. Têm crescido grupos com um ódio desmesurado a pessoas, por estarem
simplesmente a ser pessoas, de forma completamente absurda e isso é
preocupante. Precisamos de mais união e menos mesquinhice urgentemente, para
combater isso.Quanto à forma como me encaro a mim mesma, acho que é
natural. Nunca fui outra pessoa, não saberia o que é não ser eu, tentei lidar
com as minhas realidades à medida que elas se revelaram, como tentamos todos, e
penso que não me tenho saído mal… (risos)
2. Depois do teu
artigo publicado em Julho no Dezenove.pt, qual o feedback que recebeste? O teu
artigo é o único publicado até hoje no dezanove acerca de LGBT+ com
deficiência, como encaras esse facto? Há ou não muito ainda por fazer?
Há muito ainda por fazer, sim, claro que sim. Começando pelo
despudoramento sobre os nossos corpos, sobre os nossos padrões físicos, sobre a
nossa condição humana. E digo isto muitas vezes também em relação a nós mesmos.
Há ainda muito por fazer em termos de auto-exploração, de nos descobrirmos para
nos sabermos também retratar, para conseguirmos depois mudar os paradigmas que
infelizmente existem. Acho que trazemos, além das batalhas físicas, um trabalho
latente de auto-melhoramento connosco, para nos conseguirmos expandir a ponto
de nos podermos expor, para tentar estas mudanças. É preciso coragem, mas pode
ser que consigamos abrir caminhos.
3. Quais foram as situações mais complicadas que
tiveste durante a tua infância e adolescência tendo deficiência? Tiveste de
amadurecer e encarar a vida de outro modo, comparativamente a alguém sem
deficiência na tua faixa etária?
Essencialmente o bullying e as repercussões que teve em mim,
em termos de autoestima e confiança. Isso foi a parte mais complicada. Além das
dores físicas e das frustrações, claro. E o facto de ter que encarar que se
calhar a minha realidade não ia ser das mais genéricas. Mas depois aprendi a ir
vendo essa parte como uma vantagem, às vezes até uma arma, levei o meu tempo.
Tem a ver precisamente com isso, com esse amadurecimento. Mas não tenho a
certeza se amadureci por causa das condições físicas, na realidade. Promovem
outra forma de olhar a vida, claro. Mas sempre me senti uma alma velha, até em
questões que não tinham nada a ver com isso. Já era naturalmente desadequada à
minha faixa etária. Isso talvez tenha impulsionado mais, mas penso que faz
parte da minha essência. E acho que ainda bem.
4. Qual são os teus maiores desafios na vida diária?
Sem querer ser demasiado lírica, acho que o meu maior
desafio diário sou mesmo eu, enquanto pessoa, e a minha necessidade de reinvenção
constante, muitas vezes pode ser desgastante, isto de “brincar” com as minhas
próprias linhas como (esperamos) meio de vida, mas, além de ser compensador, é
mesmo uma necessidade. E depois, tirando isso, são as minhas ansiedades, os
meus pânicos, o não saber se o meu corpo hoje vai resultar, se ficar sozinha se
vou conseguir desenrascar-me… apetecer-me apanhar um avião para o Tibete e não
poder… (risos) é… não poder viver às três pancadas, despreocupadamente…
gostava, pelo menos de experimentar um dia, sair do survival mode um bocadinho e respirar.
5. Achas que existe
uma total falta de visibilidade das pessoas com deficiência em Portugal? E
pessoas com deficiência LGBT+?
Das pessoas com deficiência não diria, já existe gente a
desbastar caminhos, felizmente. A Mafalda Ribeiro, por exemplo, o Salvador
Mendes, o Paulo Azevedo, a Diana Bastos e o trabalho que se tem feito na
companhia Vo’arte, acho que pode mudar muita coisa. Agora em relação a pessoas
com deficiência LGBT+, a história é outra… e infelizmente mais funda do que
isso, começa logo no reconhecimento de pessoas com deficiência enquanto
indivíduos com dimensão sexual existente. Felizmente há páginas como o Sim, nós
fodemos que têm feito esforços para mudar isso. Mas, nesse contexto (ainda
muito pequeno para o que devia) ainda é tudo muito heteronormativo. Espero
conseguir mudar alguma coisa nisso.
6. O que achas que
poderíamos fazer em conjunto para mudar esse paradigma da visibilidade ?
Unirmo-nos. Eu sei que regra geral não é bom sermos
estereotipados todos como estando no mesmo saco, mas neste caso particular
desta minoria dentro da minoria, acho que é urgente unirmo-nos, para
conseguirmos alguma evolução da sociedade. Deixarmos de ser exemplos tão
pontuais. Termos uma “pegada” concreta. Acho que a nossa surpresa em nos termos
encontrado um ao outro fala por si sobre o quanto isto é necessário.
7. Na tua opinião,
como lida a sociedade com uma pessoa com deficiência? Tendo fluidez de género, e ainda sendo
LGBT+, isso traz mais pressões para a
forma como os outros nos vêem?
Não sei bem se lida com medo, se com desconhecimento. Quero
acreditar que grande parte das vezes o desconforto das pessoas é genuinamente
por não saberem como reagir. E isso só se combate com a visibilidade de que
estávamos a falar, até que caiamos em lugar-comum. Sendo gender-fluid e tendo a
sexualidade que tenho… talvez provoque estranheza, sim. Nunca senti que se “acumulassem”,
digamos assim, uma à outra, essas pressões. Mas talvez provoque estranheza por
se calhar nem passar pela cabeça das pessoas a hipótese, lá está, por falta de
representação.
8. Qual é o teu maior sonho?
Paz de espírito! (risos)… não sei, podia dizer felicidade,
mas não vejo isso enquanto meta. Gostava muito de sentir sempre que tenho um
propósito na vida. De poder sempre dar de mim à arte, de ser uma pessoa mais
destemida, um bocadinho mais leve (não totalmente, não gosto muito de me
descomplicar a 100%, perco a “veia”), gostava de me sentir livre, em todos os
aspectos. E de um dia olhar para trás e ver que consegui tornar-me na pessoa
que vim ao mundo para ser.
9. Se pudesses mudar
alguma coisa em relação à forma como o mundo olha para as pessoas com
deficiência, o que seria e porquê?
Mudava a forma como as pessoas se olham umas às outras, no
seu todo. Ou melhor, tentava que se passassem a olhar, mais, acho que é isso
que falta. Não está na forma de olhar, o problema, está é no acto sequer de nos
olharmos, que existe tão pouco, se isso passar a acontecer, com verdade, o
resto virá por acréscimo.
10. Na tua opinião o
que é que poderia tornar a vida de uma pessoa com deficiência, melhor?
Dependerá muito, caso a caso. Mas muito disto que disse
daria para esta resposta, de alguma forma. Termos um mundo que nos considere
existentes e se adeqúe. Olharmo-nos, e olharem-nos, com verdade.
Auto-aprofundarmo-nos, acreditarmos em nós, nunca perdermos a capacidade de
sonhar… Aceitarmo-nos da melhor forma que formos sendo capazes. Encontrarmos o
nosso propósito e lutarmos por ele como se a nossa vida dependesse disso, que
muitas vezes depende mesmo. Unirmo-nos. Unirmo-nos. Unirmo-nos.
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