Inês Marto: André, tens 21 anos, e, no mínimo, um rol muito peculiar de características. Se tivesses que te resumir numa frase, para quem não te conhece, como te apresentavas?
André Mendonça: "Sou tudo, sem querer ser nada." Todas as experiências em que o destino me colocou não dependeram de mim para aprovar ou reprovar, simplesmente estava escrito assim. Ter deficiência - paralisia cerebral, sentir atração por pessoas do mesmo sexo, ser poliamoroso, ter uma identidade de género diferente da norma padrão, são todas questões que sempre fizeram parte de mim e fui descobrindo no último ano.
IM: Um dos teus sonhos é a cozinha. Queres falar um pouco sobre isso?
AM: Esse sonho começou quando ainda vivia na Ilha da Madeira de onde sou natural. Desde pequeno que dentro de mim se manifesta o “bichinho culinário”, observar os outros a fazer e ter vontade de pôr as mãos na massa. As primeiras tentativas não foram as melhores, mas com o tempo fui aperfeiçoando. A vida forçou-me a crescer mais cedo do que o esperado, tive que aprender sozinho a desenrascar-me, porque os meus progenitores trabalhavam a tempo inteiro. O gosto foi crescendo e a vontade de experimentar novas coisas também, fazendo adaptações e mudanças às receitas originais. Tenho mais gosto pela parte da pastelaria, desde a infância, e com o passar dos anos esse bichinho foi crescendo, e tornou-se em algo que gosto mesmo imenso de fazer e que me dá prazer. Dada a condição de saúde que tenho, cozinhar por si só é um enorme desafio… Tenho recebido constantemente elogios das pessoas que me são próximas, e incentivos de que deveria obter formação certificada, dando continuidade a este gosto e talento que tenho, mas trata-se de algo que não é contemplado pelo sistema educacional Português para quem tenha uma deficiência mais complexa do que simplesmente a perda de visão, audição, ou falta de membros. Isto fecha injustamente muitas portas. Somos válidos para fazer projectos e termos uma carreira activa. Tal como disse a masterchef Eva Silva, no apelo que fez no PortoCanal na sua rubrica de culinária quanto ao querer frequentar um curso de pastelaria: "O André tem mais vontade e gosto do que aqueles que estão lá por obrigação!”
IM: Além da cozinha, também te interessas pelo foro artístico, correcto? Como foi até agora a experiência, e quais os teus sonhos nesse campo?
A paixão pelas artes já vem desde há muitos anos. Frequentei aulas de danças de salão, de guitarra e canto. Quando cheguei ao 9º ano, ao fazer os testes psicotécnicos, estes indicavam que eu deveria seguir uma carreira artístico-musical. Eu bem queria entrar para o ramo artístico, porém sabia que essa hipótese não poderia ser considerada válida para os meus progenitores. Fui para um curso Tecnológico de Informática, no qual não me identificava de todo, e quando, no 11º ano, comecei a frequentar o grupo de teatro da minha escola secundária, percebi que tinha cometido um erro. Fui parar ao grupo de teatro por recomendação da psicóloga da escola. Aquele tempo da semana constituía as únicas duas horas que me faziam sentir bem comigo mesmo, onde podia ser quem eu quisesse sem medos, e revelou-se ser uma grande paixão minha. Foi o que me salvou da depressão que tive nesse ano. Permitiu-me crescer um pouco enquanto pessoa, aprender mais sobre a vida, como lidar com os desafios que nela surgem, principalmente os problemas e frustrações.
Quando vim para Lisboa em 2014, após ter abandonado o curso de Informática devido à intensa homofobia a que estava sujeito na escola e em casa, decidi mudar o rumo a minha vida e queria seguir teatro, fiz um audição na ACT e na NBA (Nicolau Breyner Academia), tendo sido aceite nesta última no curso de actores. Fiz algumas figurações em televisão e pouco mais. Apenas estive três meses no curso da NBA, mas passei bons momentos. Na altura desisti do curso pois apercebi-me que não estava na melhor fase da minha vida para me dedicar a algo que exigia tanto de mim, tanto a nível físico como psicológico.
Os meus sonhos neste campo são conseguir mostrar ao mundo das artes que é possível ser-se ator mesmo com os desafios que a CP nos coloca. Não cair no estereotipo de ser obrigatório ter mil e uma capacidades ou não se tem valor. Já é mais do que tempo de haver visibilidade e demonstrar a importância de nós, pessoas com deficiência, sermos capazes, cada um à sua medida e de merecemos oportunidades do mesmo calibre, tal como qualquer outro humano. Gostava de fazer um musical com temas LGBTQ+, não deixando de parte a questão da deficiência nesse mesmo panorama. Na minha humilde opinião considero que há espaço para as pessoas LGBTQ+ e pessoas com deficiência no mundo das artes, deixemo-nos de normatizar. Estamos em 2017. Há que mudar!!!

IM: Também pertences ao mundo LGBTQ+. Como lidas com pertencer a duas minorias desta maneira?
AM: É duro. Saber desde pequeno que sei que sou diferente, sem saber o porquê, o que está mal…. porque nunca ninguém foi capaz de sentar-se ao meu lado, explicar-me o que aconteceu, responder às minhas inquietações e questões… não é tarefa para qualquer um. Todos à minha volta desviavam a conversa, inventavam justificações, nunca mencionaram que eu sofria de uma deficiência [Paralisia Cerebral] e que isto iria ter repercussões depois da infância/adolescência a vários níveis, como tenho vindo a verificar. Os meus progenitores nunca foram capazes de encarar que tinham um filho com deficiência, aceitar esse facto e terem a consciência que eu precisava de ser tratado e informar os restantes familiares do que realmente se passava. Ao invés disso, inventavam histórias e mentiras para encobrir as minhas falhas e defeitos… Não é fácil levar com um balde de água fria aos 21 anos, e começar a encaixar as peças todas do puzzle e perceber-se que é mais complexo do que à primeira vista, custa, de um momento para outro apercebermo-nos que não somos capazes de fazer aquilo que sempre pensávamos que éramos. Ora pertencer-se ao mundo LGBTQ+, é por si só já um desafio, mas pretender a duas minorias "rebenta a escala". De dia para dia, tento ir digerindo devagar esta nova etapa e viragem que a minha vida está a sofrer.
IM: No teu dia-a-dia, quais são os maiores desafios, e como é que os tens encarado?
AM: Acho que o maior desafio de alguém com deficiência é a forma como os outros e mundo nos percepcionam. Não há nada de errado connosco, cada um é como é, e todos temos capacidades e virtudes, ao nosso jeito, à nossa maneira. Mas esse peso psicológico que carregamos por imposição do outro, é bem grande. Muitos consideram que, ao começar a afirmar-me, que deixei de ser eu, de ter as minhas qualidades, os meus valores, os meus ideais, os meus interesses. Por vezes chego a pensar seriamente que devo ter algum “problema” pois vejo os rapazes a olharem para mim, julgarem-me e quererem-me só pela minha aparência física e pela minha alta líbido, sim as pessoas com deficiência caso não saibam também são seres sexuais. Já me senti usado mais do que uma vez… alguns já se aproximaram de mim aparentemente com boas intenções e no fim descobri que fui só um meio para obter um fim. Outros pensam que se podem aproveitar de mim como se eu fosse um brinquedo sexual à sua disposição que está ali, de graça, em vez de estar exposto numa vitrine de uma sex shop com uma etiqueta de preço. Em oposição, olham maioritariamente para o meu companheiro pela pessoa que ele é, pelos interesses, pelo intelecto, pelos hobbies, gostos (musicais, literários, etc…). Sem corpo não há pessoa e sem pessoa não há corpo, torna-se um invólucro vazio. Sexo não é tudo na vida. Quero ter amizade, companheirismo, partilha de experiências e perspectivas de vida, evoluir, crescer em pessoa e em ser.
IM: Assumes-te como poliamoroso. O que pensas sobre a forma como a sociedade vê o poliamor?
AM: A sociedade ainda olha com maus olhos, é ainda muito mal visto e não entendido. A definição mais lata de poliamor diz que é “a existência de um relacionamento em que pode existir a possibilidade de outros relacionamentos afectivos e/ou sexuais com o consentimento de toda a gente.”. É complicado encontrar alguém que veja o mundo assim. É difícil a outra pessoa não se sentir mal, não se sentir como “o outro” ou sentir que não recebe tanta atenção… Muitas acham que quem é poliamoroso é alien, ter relação poliamorosa é estranho, que quem o é não gosta verdadeiramente da pessoa que está ao seu lado…
IM: E quanto à tua identidade de género, apresentas-te como trans. Queres falar um pouco sobre essa definição?
AM: Identifico-me como transgénero, não binário, genderfluid e andrógino. Havia ali algo me deixava inquieto, desde sempre, e via-me obrigado a reprimir o meu verdadeiro “Eu”, para me encaixar nos cânones e estereótipos da sociedade. Eu desde cedo que sentia um lado mais feminino em mim (querer pintar o cabelo, unhas, usar maquilhagem, usar saias, vestidos, sapatos de salto alto, entre outras peças de vestuário e acessórios como brincos, colares, anéis). Em termos de expressão de género trata-se algo ambíguo, pois não tenho uma aparência somente-feminina nem somente-masculina mas sim algo no meio do espectro com fluidez. Sinto um duelo dentro de mim, um mix de masculino e feminino. Depende muito dos dias, do meu estado de espirito, e é algo com que eu ainda hoje não sei lidar bem na totalidade.
Gostava de ter um físico e uma aparência que me fizesse passar mais despercebido na rua, pois as pessoas notam logo que tenho barba e pêlos no tronco, pernas e braços e percebem logo que “sou um rapaz vestido como uma rapariga”, acabando por sofrer imenso com isso, seria preferível que as pessoas ficassem confusas ou baralhadas e interpretassem como não sendo nem rapaz nem rapariga. Chego a aperceber-me disso mesmo nas pessoas que conheço, elas ficam apreensivas sobre aquilo que eu estou a querer transmitir no dia-a-dia. Já tive comentários de amigos que dizem sentirem-se estranhos ao meu lado quando estou a usar saia, vestido, sapatos de salto alto ou maquilhagem.
IM: Tens um dos diagnósticos mais raros de paralisia cerebral que conheço. Como lidas com os estigmas à volta disso?
AM: Ao longo do Verão de 2016, fui notando um ligeiro agravamento do meu estado de saúde… comecei a revelar mais dificuldades em ouvir (eu frequentemente falava alto para combater isso e nem me apercebia), a capacidade respiratória, assim como a capacidade de processar informação e a resistência ao esforço físico, todas diminuíram. Tornou-se necessário começar a fazer check-ups nas várias especialidades para perceber o que se poderia estar a passar. A primeira paragem foi na audiologista que, após efetuado o rastreio gratuito, verificou que eu sofria de perda auditiva moderada em ambos os ouvidos, e que seria importante eu começar a usar aparelhos auditivos para prevenir o agravamento da perda.
Nas semanas que se seguiram fui continuando a ter consultas atrás de consultas, de todos os campos: oftalmologia, pneumologia, imuno-alergologia, neurologia, fisiatria, neuro-psicologia, psicologia, terapia da fala, estomatologia/medicina dentária ATM (articulação temporo-mandibular), entre outros. Em cada especialidade, encontrámos explicações para inúmeros sintomas, comportamentos corporais e atitudes que eu tinha, muitas das quais, involuntariamente. Tudo começou a encaixar-se no puzzle e o panorama não era nada animador.
Para pessoas que sofrem de paralisia cerebral, é normal passar por uma fase de envelhecimento prematuro, entre os 20 e os 40 (face à infância em que os sintomas permanecem relativamente controlados e monitorizáveis) mas infelizmente ainda não existem estudos suficientes focados na fase adulta, para se poderem fazer muitas afirmações e terem certezas ou previsões para dar.
Este, foi um enorme desafio, pois, por incrível que pareça, só à quarta tentativa é que consegui um diagnostico que correspondia aos meus sintomas, apesar de estar classificado como “paralisia cerebral espástica - diplegia assimétrica”, acaba na verdade por ser uma “paralisia mista - triplegia” (o membro superior direito e ambos os membros inferiores afectados), por ter também fenómenos de distonia, rigidez, ataxia.
Não lido nada bem com isto, pois da minha experiência, para ser reconhecida a deficiência por parte da sociedade em geral, temos de estar obrigatoriamente numa cadeira de rodas, ser cegos ou surdos, tudo aspectos notoriamente visíveis. Já me aconteceu em diversas ocasiões, tanto em reuniões para cursos, consultas médicas, pessoas ao meu redor dizerem e porem em causa aquilo que eu transmitia: “Ah mas não parece que tens algo!”, “Pensava do que tinha dito ao telefone/mail que se encontrava numa cadeira de rodas”, “Tu falas e andas”, “Estás a exagerar, são coisas da tua cabeça”, “Você está óptimo, pare de armar-se em coitado!”…
Eu desafio-me imenso, e ainda me acho capaz de fazer tudo… e é duro saber que isto é mais complicado do que o esperado, e que irei ter de depender de alguém para o resto da minha vida.
IM: O que pensas que podia ser feito para mudar a tua vida para melhor (quer quanto à condição física, quer nas questões LGBTQ+)?
AM: É necessário, nas questões LGBTQ+, dar visibilidade acima de tudo. Principalmente às pessoas T (Trans) nos diversos contextos, mostrar que todos merecem ser respeitados independentemente das suas crenças, identidade de género, orientação sexual, deficiência entre outros.
Devemos unir-nos estar coesos, mudar a forma como o mundo nos olha, pouco a pouco, porque tenho a certeza se isso mudar… no dia seguinte sou outra pessoa.
Antes de dizerem "não digas que não és capaz" pensar porque é que digo que não sou capaz, pensar no peso que a sociedade tem sobre nós, pensar que pela quantidade de nãos e portas fechadas que já tivemos, é difícil em alguns dias ver a luz no fundo do túnel, ter a esperança e a confiança de que algo se há de conseguir. Lá por ter um mero “defeito de fabrico”, chamemos-lhe assim, não quer dizer que não haja um caminho que me permita fazer alguma actividade profissional de alguma forma. Acho que o melhor seria o outro tornar-se mais atento, inclusivo, aberto a ouvir-nos até ao fim sem pré julgamentos precipitados.
IM: Se tivesses tempo de antena em que todo o mundo te pudesse ouvir, que mensagem gostarias de deixar?
AM: Está na hora… na hora de ver para além do óbvio. Eu faço parte daquilo a que se designa “padrão”. Compaixão, não obrigado… Eu sinto me capaz de fazer coisas ao meu jeito, ao meu ritmo, à minha maneira , amo cozinhar e fazer doces, queria vender e sentir-me útil, já que todos dizem que é bom e que deveria fazer dinheiro com isso. Mas do que serve receber tantos elogios, se não se valoriza de verdade o mérito de quem merece.
Acredito que nada é impossível, somos resilientes, e com uma personalidade forte. Eu tento, tento e tento… não me consigo conformar. Eu não sou a apenas a CP, ela é só uma pequena parte de mim. Eu sou um mundo de coisas para além disso… Vamos remover complexos, desmistificar preconceitos, e educar esta sociedade.
Quando chegar o nosso dia, o sabor da vitória vai saber tão melhor, podem ter a certeza que chegará, porque não aceitamos o não! #unidos
Eu sou o lado direito do cérebro . Porquê o direito? Pergunta-se… foi aquele que permaneceu intacto e desenvolveu-se…
Sou criatividade. Um espírito livre. Eu sou paixão. Sensualidade. Eu sou o som das gargalhadas. A sensação de areia debaixo dos pés descalços. Sou movimento. Cores vivas. Eu sou o desejo de pintar numa tela vazia. Sou imaginação sem limites. Arte. Poesia. Eu sinto. Eu sou tudo o que eu queria ser.
Sou criatividade. Um espírito livre. Eu sou paixão. Sensualidade. Eu sou o som das gargalhadas. A sensação de areia debaixo dos pés descalços. Sou movimento. Cores vivas. Eu sou o desejo de pintar numa tela vazia. Sou imaginação sem limites. Arte. Poesia. Eu sinto. Eu sou tudo o que eu queria ser.
Agradeço imenso à Inês Marto pelo nosso encontro de almas. Acredito que iremos voar longe! Até à próxima.
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