A dissecação dos ciclos emocionais de raiva, ansiedade e subsequente aceitação pessoal, a partir de Giovanni Frazzetto, aplicada à construção da performance (Unbreak)able.
A performance (Unbreak)able teve como mote e como ímpeto criativo desde sempre a
base cíclica e circular em que me afundo e afloro. Em que convirjo comigo,
colido comigo, mergulho em mim e depois me elevo.
Esses círculos, esses ciclos, são
tanto a base da minha autoconsciência como, por consequência directa, da minha
arte que é objecto disso mesmo. E reflexo disso mesmo.
No caso específico da performance
escolhida como termo de análise dos processos emocionais subjacentes à criação
– (Unbreak)able – as causas desses
mesmos ciclos e aquilo que em mim os aviva foram desde logo questões que tive
que explorar, chegando a motivos concretos, que pautam todo o percurso
emocional.
Assim, escolhi assentar a minha
autoexploração nesses gatilhos emocionais concretos, por uma questão de
existência de um caminho delineado, com uma mensagem artística a passar, que
considerei essencial à realização do trabalho performático.
Tratam-se de variantes diversas. Mas
todas convergentes num denominador comum: a forma de me olhar a mim própria e
as consequências disso. Mais pormenorizadamente, aquilo que nisso implicam
questões como a minha diversidade funcional – a chamada deficiência – e como me
leva a perspectivas diferentes sobre o meu corpo e a forma como com ele me
relaciono; a minha expressão de género, que é também factor determinante desse
processo e até mesmo a minha sexualidade, onde tudo isto se reflecte
directamente.
Todos estes factores corroboram um
quadro geral de como sinto e penso quando me olho ao espelho, ou quando me
torno consciente de mim, quadro esse que tentei transpor para o trabalho
artístico variadas vezes, entre elas a performance (Unbreak)able.
Esse é o tal quadro que digo
acontecer de forma cíclica ou circular. Esse é o tal quadro que em mim traz a
arte quer enquanto escape quer enquanto espelho.
Procuro aqui, na análise de How we feel, de Giovanni Frazzetto,
explorá-lo nos seus prismas psico-emocionais e biológicos para uma aproximação
mais científica, para assim conseguir dissecar e deixar explícito de melhor
forma esse que é o complexo mecanismo que acaba por me pautar em tanto do que
sou.
Inicio a análise por onde a inicia
também Frazzetto, no seu primeiro capítulo, “Anger: hot eruptions”.
Frazzetto começa logo por tocar num
ponto realmente interessante: “Anger is also fear with an armour. It works as a defensive, pre-emptive reaction before
something hurtful can be done to us.”1
Essa afirmação da raiva ser também
medo com uma armadura leva-me a considerar, primeiro que tudo, a raiz da
frustração e raiva que expressei como parte primeira da performance.
A reacção de revolta para com o meu
corpo físico assenta essencialmente no medo da fragilidade que lhe é inerente.
O medo dos obstáculos que isso me pode trazer de futuro, como até aqui tantas
vezes trouxe.
O medo que é consequência justificada
de o mundo não estar preparado para os nossos corpos não-normativos, para a
nossa diversidade funcional. E o desamparo que isso nos traz, o nunca saber por
certo como é o amanhã, se não tivermos ninguém. O ninguém ser garantido, nem
para nós nem para os outros. E neste caso, a sobrevivência não ser,
consequentemente, garantida, também.
E a frustração que isso nos traz, por
nos lembrarmos a cada movimento consciente do fio de dependência física que lá
permanece. E de, no fundo, nem sabermos como vamos ser, quem vamos ser nós
amanhã, e em que padrão físico nos vamos reger. Já que, para nós, nem nós
mesmos trazemos manual de instruções que nos valha.
Se um dia corre suavemente, talvez
consigamos cozinhar o almoço e lavar a loiça – é como quem diz escalar uma
montanha, e talvez no fim nos sintamos válidos. Mas se, por outro lado, um dia
começa menos bem, desde logo sair da cama se torna uma missão impossível. Desde
logo o corpo não reage, desde logo a força não chega, desde logo tudo cai ao
chão e muitas vezes a nossa força também.
E desde logo não resta outra hipótese
senão colocar essa armadura que a raiva impõe ao medo. Aproveitar a explosão de
revolta, do porque é que nos acontece a nós se não temos culpa de nada, e
deixar que nos comande a força.
E, bem ou mal, sair da cama, mesmo
sem que nesse dia o corpo nos permita força para mais do que nos fazer reféns
da cadeira-de-rodas, a mesma que nos outros dias é um par de asas.
E ainda assim, de pijama, descalços e
a contentar-nos com o pacote de bolachas que conseguimos alcançar, fechar a
porta do quarto que deixamos para trás das costas e seguir vida. Mesmo que nas
nossas quatro paredes. Mesmo que a não ter outra coisa por ímpeto nesses dias
que não fazer da nossa própria dor uma porta, escrever sobre ela, pensar sobre
ela, mergulhar nela e dissecá-la.
Talvez então chegar à arte. Talvez
então chegar a outras asas. Talvez um artigo, talvez uma performance, talvez um
poema. Seja como for, uma semente, seja como for, qualquer coisa para que o
custoso sair da cama não tenha sido em vão.
No caso, a raiva e a ansiedade estão
intimamente ligados. A raiva é consequência dessa ansiedade, desses medos. É a
explosão dela que faz tantas vezes com que não nos reste outra coisa senão
continuar em frente.
A ansiedade, contudo, parece-me ser
um processo menos linear, e sem a compensação de trazer consigo a força. A
ansiedade é muitas vezes paralisante. E é também muitas vezes causada pela
raiva.
O caminho é bilateral. Se por um lado
leva a ela, por outro lado o atirar ao abismo em que a raiva nos coloca, pode
muitas vezes trazer novas situações de desamparo em que a ansiedade escala,
levando-nos ao poço de dúvidas que nos assola.
Diz
Frazzetto, no capítulo terceiro, que dedica à ansiedade: “If examined carefully,
some of those worries sound ridiculous, or unnecessary to say the least, don’t
they? Yet, alone in the darkness of my bedroom, I didn’t seem to have much
control over them.”2.
“I began to worry about the
meaning of all I had done, whether or not I had taken the right decisions in
life . It was one of those moments when I thought I needed to do everything at
once, as if the world were about to end and I only had a few hours left to
accomplish all I had ever wanted to do.”3.
Mas a ansiedade também, no contexto
da segunda parte da performance, mais raízes que não estão apenas ligadas à
ideia longínqua de um corpo funcional.
Prende-se muito também com o corpo
não-normativo na expressão de género, a fluidez de género, o não binarismo, o
medo da exclusão social que, além do resto, isso também me traga, que me leve à
solidão – solidão essa que se torna mais assustadora ainda se considerarmos
toda a explicação anterior – o medo da minha dimensão enquanto ser sexual não
ser reconhecida, o medo do desconhecido dos outros face a mim nesse contexto e
que isso os afaste, como muitas vezes me chega a afastar a mim, por disforia e
por revolta da distância face aos ideais.
“Fear has a specific target.
What about anxiety? Well, anxiety is not as simple. Anxiety is usually a fear
of the indefinite, something that we cannot always explain or even locate in
space and time. It is unpredictable, and often the anticipation of an unknown
or not necessarily incumbent threat.”4.
No fim de contas, uma espiral
exacerbada de preocupações sobre a desadequação, o isolamento e os sonhos
grandes demais para a realidade, que acaba por se tornar subcutânea e muitas
vezes indefinida.
Mas é o afundar-me em tudo isso que
me leva à terceira e última parte da performance. A aceitação, a resignação, o
conformismo – embora nunca total porque já o sei cíclico, porque já me sei
cíclica a mim, e porque já me sei sonhadora sine qua non – é esse precipício
que me adensa e me torna maior, porque é também esse precipício que me permite
as ferramentas de fuga e de escape que me dão propósito, que me fazem valer os
dias em que todo o resto me falha.
Nesse aspecto, pode até dizer-se ser
meta-performance: (Unbreak)able foi
em si mesmo um ponto de fuga, uma ponte para a aceitação induzida, enquanto
simultaneamente acaba por versar sobre esse mesmo conteúdo, na sua parte final.
Em última análise, apraz-se
pertinente expor conclusivamente o texto que escrevi enquanto enquadramento
teórico de defesa académica da performance, que creio encapsular da minha
própria perspectiva este padrão sobre o qual nos debruçamos:
![]() |
(Unbreak)able |
“Quis despir-me. Na verdade, queria
poder despir mais que o corpo. Depois das roupas queria tirar a pele. Depois da
pele queria arrancar a carne. Depois da carne desfazer os ossos entre os dedos
e os dentes. E desse nada que restasse, ver nos meus despojos até onde se
demarca a minha diferença. Isto sou eu. Não sei o que isso quer dizer. Não sei
a forma certa de me olhares, não há forma certa de me olhares, não há forma
certa de coisa nenhuma, era por isso que não sabia como fazer nada disto.
Partiria tudo do pressuposto do que vês quando me olhas. E a verdade absoluta
de mim, nem eu a tenho.
Uma pessoa, por acaso numa cadeira,
ou uma cadeira com uma pessoa? Isto sou eu. Há 22 anos que ansiava pela minha
própria libertação. Descobri a arte como espectro das minhas prisões. O
alimentar e o alimento circular dos meus fantasmas. Tempos a fio procurei um
grito de fénix. Mais tarde percebi ser cíclica. Caminhar lado a lado com a
morte, respirar cara a cara com o frágil, transpirar pele a pele com o vácuo, é
isso que me renova, é isso que me mantém. Será um dos meus poucos vícios,
injectar sal nas feridas.
Quis mostrar esse tanto mais. Para lá
de posto em causa o diferente e o igual, o que fica por ver. Não sabia como. O
meu corpo, por si só, grita teses demasiado alto para que o resto sobressaia.
Então, quis ir mais longe ainda: fiz
da nudez ferramenta, das cicatrizes néones para um olhar aberto, das
deformidades um púlpito por onde te trago a olhar-me desde mim. E despojei o
caminho expectável do resultado artístico. Ao que em mim há de poeta, retirei a
poesia. Deito-me por terra, o nu do corpo espelha apenas a erupção que há-de
vir. Faço da sujeição à minha própria infimidade desmascarada, despudorada de
artifícios, o veículo para a minha própria libertação.
Era isso que me faltava – não eram
poemas, não era a demonstração óbvia do físico per si, não era o simbolismo
artístico de uma identidade fluida de género, ou o fio da navalha da morte –
isso é o que já sou todos os dias. Faltava-me a crueza de me deixar ao
precipício de mim, puxar da raiz de todos os traumas e deixar que a realidade
tomasse o seu curso de explosão. Por uma (e de uma) vez, sem estéticas, ser-me
veículo e permitir-me a chorar todas as lágrimas. Incorro no risco do sufocante
demasiado, ciente disso como na vida, acompanhar-me-ão os que souberem ficar,
do maior resto não rezará a minha história. Hoje enfrento os meus fantasmas,
cultivá-los-ei alimentados da minha pele, suor, lágrimas, e tudo o mais que
este deliberado incurso no precipício proporcionar, para que jamais me deixem.
É deles que voo. A minha vida
é isso – vertigem.”
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